quarta-feira, 24 de abril de 2013

O OLHAR DO THEOBALDO (um encontro com um pedinte lembrando a história de um cão) - RÔMULO ROSTAND

Voz de Rômulo Rostand
  
                Outro dia estava andando pelo centro da cidade onde moro, coisa que gosto muito de fazer, e vi um homem sentado na calçada num choro seco. Uma expressão de desânimo e desolação de dar dó. Era um pedinte, já idoso. A expressão daquele homem me comoveu, mas, muito mais do que isso, trouxe a tona uma passagem que eu carregava na memória adormecida há muito tempo.


                Quando eu tinha meus 14 anos, cursava o técnico, nos dois horários. A escola ficava a uns 4 km de distância. O trajeto eu fazia a pé, duas vezes indo e duas voltando.
                A melhor caminhada era a matinal, cruzava com muita gente, que no decorrer dos três anos do curso ia, a cada encontro, ficando cada vez mais familiar. Mas, quem mais me marcou foi um cachorro. Isso mesmo um cão,  cão mofino e sardento, um vira-lata moribundo, por melhor dizer.

                O bicho vinha em direção contrária e quando o vi, senti-me ameaçado, não tanto por ele, mas, mais pelas pulgas que certamente carregava. Preparei-me para afastá-lo com um certeiro de “ki-chute”, mas quando olhei mais atentamente o bicho, vi que não poderia fazer aquilo. Ninguém poderia, a não ser que não tivesse o mínimo de humanidade. Seus olhos com contornos desfigurados e quase murchos traziam uma expressão que eu nunca havia visto, nem em gente, nem em cachorro.
Uma expressão do sentimento de abandono e que soava como um pedido de clemência. Parou na minha frente com o focinho meio que apontando para baixo, e os olhos, num ângulo acentuado pela posição da cabeça, buscavam os meus. Não sei descrever, mas, nunca tinha recebido tão forte emoção num olhar, muito menos de um cachorro!

                Parei por uns segundos, mas, logo reagi. Afastei-me de lado, tomei a dianteira, e gritei: “Bora Theobaldo!”, isso sem olhar para trás. E não é que Theobaldo veio! Veio numa elegância que até lembrava cavalo em parada militar, cavalo de general!  Apressei o passo e o bicho atrás, firme, na linha. Minutos depois estávamos na escola. O vigilante quando me viu de “guarda-costas”, apressou-se logo em me dizer que ele não poderia entrar. Não indaguei, busquei uma sombra boa, chamei Theobaldo e só. O bicho espertamente já foi se arranchando.
                Depois de quatro horas de aulas, quando apontei na escada, Theobaldo surgiu numa rapidez de deixar Pit-Bull na poeira.  Entendi  que tudo que ele queria era um dono, alguém que pudesse lhe dar a chance de desempenhar seu papel de fiel amigo do homem, não queria se sentir um cão sem dono. Agora estava radiante, orgulhoso de ter alguém que lhe desse ordens. Seus olhos até brilhavam.

                Que mudança! Pena que só eu era testemunha.  Logo que pegamos a estrada, um professor parou numa pick-up Saveiro para me dar carona, subi primeiro e quando chamei Theobaldo, o mestre gritou, quase em desespero, “ele não!”. Não tive dúvidas pulei do carro já acenando tchauzinho.

                O caminho até em casa foi curto. As reações é que foram problemáticas. Ninguém queria que Theobaldo nem se aproximasse. Antes que agredissem meu novo amigo, dei meia-volta. Fui pro campinho e sentei-me. Theobaldo posicionou-se alguns metros a minha frente e me olhava fixamente, com uma cara de interrogação que só cachorro consegue. Eu não queria deixá-lo a mercê da sorte e não conseguia ver uma saída.

                Uma enorme frustração foi me tomando. Se tivesse alguns anos a menos, resolveria de letra. Era só esconder Theobaldo embaixo da cama ou coisa assim. Mas, tinha 14 anos e a tal razão já havia me impregnado. E, nela não encontrava solução. Já não era mais sentimento de frustração. Aliás, como todo menino de periferia eu havia aprendido a lidar com frustrações muito cedo. Ali, a distância entre um não e ficar de “couro quente” é só um pouquinho de insistência. Frustração nem me abalava, era só aprontar alguma, sacanear alguém, até um nó na roupa dum irmão já resolvia, nem lembrava mais. Naquela ocasião descobri o que era sentimento de impotência. Estar cercado de frustração por todos os lados, não tem saída. Maldita razão!

                Voltei para casa, sozinho, não olhei para trás, não conseguiria encarar o pobre Theobaldo, agora confuso e decepcionado. Que belo dono foi arranjar. A alegria durou pouco. A molecada agora se divertia tocando Theobaldo para longe. Em casa, ainda tive que ouvir censuras e indagações sobre a minha sanidade.   Se ao menos eles tivessem visto o olhar do Theobaldo!

                Neste instante, voltei em direção ao presente. Um ponto úmido descreveu um leve risco na minha face, não sei se pelo Theobaldo, pelo homem ou por aquele garoto de 14 anos que revivi por momentos. Espalhei a umidade com as costas da mão direita. Veio-me a consciência que não tenho mais 14, até a combinação dos dígitos invertidos já deixei para trás. E aí, a mesma razão que me deixou inerte e sem reação naquele dia de cão, me impulsionou a seguir caminho e mudar a direção dos pensamentos.

                Reconsiderei que a razão não é tão maldita assim, principalmente quando combina com a emoção. Pois, nada mais saudável que exercitar os sentimentos, até para não perdermos a essência humana. Mas, como diz o poeta e endossa a razão ...é melhor ser alegre que ser triste, ser alegre é a melhor coisa que existe...”.

                Um pouco de vista grossa não faz mal a ninguém. É até obrigatório nos manuais de sobrevivência da vida moderna. Já pensaram se tivéssemos de encarar profundamente cada Theobaldo que encontrássemos, seja homem ou cachorro?

                Por outro lado, que bom se pudéssemos todos ser tocados pelo o olhar de Theobaldo pelo menos uma vez na vida...

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Essa crônica é a narração de uma passagem da minha vida. Um encontro com um pedinte lembrando um remoto encontro com um cão. Uma história real que deixou marcas na minha memória..

4 comentários:

  1. Excelente texto, belíssima reflexão! Que bom seria se não nos deparássemos mais com Theobaldos, não por querer omitir uma realidade, mas porque, caso eles não mais existissem, a humanidade estaria em outro patamar evolutivo. Enquanto não chegamos lá, é bom sentir que existem seres que se emocionam e trazem dentro de si uma nesga de sensibilidade, um aprendizado do amor maior!

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  2. Às vezes, somos tomados por um embrutecimento e deixamos nossa sensibilidade em último plano. Cultivar a sensibilidade faz bem para todos nós - seres humanos falíveis.

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  3. Estou adorando as escolhas dos textos, pena que ainda não fiz a minha. :(

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  4. Realmente um excelente texto,gosto de texto que transmitam ,lendo fui tomada por um sentimento de passar pela situação,já vi e me senti como theobaldo,os sentimentos são transmitidos tambem pelo olhar..

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